Inventário de ruínas – a questão da herança
literária na poesia de Afonso Henriques Neto
Andréa Catrópa da Silva
A alegoria de Afonso Henriques é
fortemente evocativa, uma espécie de inventário de ruínas – familiares,
ideológicas, pessoais. (...) O mundo está degradado, mas ainda vale a pena: o
poeta retira da visão desencantada o móvel para repropor o sonho. (...) A
poesia, sendo sonho, é ainda a ponte que possibilita o trânsito entre o poeta e
o mundo.
Cacaso
Na observação de Cacaso acerca de um poeta seu contemporâneo,
também relacionado na década de 70 à euforia e ao estardalhaço promovidos pela
“poesia marginal” carioca, há uma aguda percepção dos paradoxos e das
descontinuidades que alimentam a obra de Afonso Henriques Neto, desde o
primeiro livro, O Misterioso Ladrão de
Tenerife (1972), até sua mais recente publicação, Cidade Vertigem (2005).
A heterogeneidade de sua poesia é
uma constante, por mais irônica que possa parecer esta afirmação, e dificulta
tanto a empatia imediata com o leitor como a tarefa do crítico. Em muitos de
seus poemas, predominam os versos “caudalosos”, que apresentam uma torrente de
imagens oníricas ou desconexas e figuram uma realidade caótica, mais próxima, talvez,
do pesadelo do que do sonho. No entanto, nesses poemas, há um vislumbre de
esperança, que se intromete no texto pelas pequenas frestas nele abertas por
imagens intensamente líricas, que valorizam a especificidade do poético, como
em “Texto” (AUGUSTO; HENRIQUES NETO, 1972, P.21):
“Oh espina
clavada em el hueso
Hasta que
se oxidem los planetas ”
(Federico
Garcia Lorca)
O texto , escura escama , pesadelo
de eternidade ,
O texto , mas não a energia que o pensou,
interrogando
a simultaneidade absoluta .
Há uma esperança nas ruas ,
nas pedras , no acaso
de tudo , uma esperança ,
uma forma suspensa
e a substância , uma esperança ,
uma certeza talvez
de que o rio não se dissolva no mar ,
de que
o ínfimo , o precário ,
a voz , a sombra ,
o estalar das carnes na
explosão
Há uma luz qualquer
sonhando integração , o suposto
envenenada
do planeta , há uma luz
qualquer
ensaiando águas pensadas no eterno
esvair-se,
da frágil realidade , da terrível matança ,
da
da fronteira do sonho ,
um texto
além do texto ,
uma esperança talvez ,
enquanto somos e nos
cumprimos,
somos e
prosseguimos.
(Este texto foi apresentado no Congresso Abralic, em 2006. Para continuar lendo, é só clicar aqui e baixá-lo.)
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