Dia 12.06 - Ministrante: Annita Costa Malufe
A poesia de Ana Cristina Cesar (1952-1983) é
indissociável do mito romântico que se criou em torno da figura da poeta.
Diante de seus poemas, é difícil quem não se pergunte pelo estatuto do “eu”,
pelas distâncias e proximidades que se armam entre os sujeitos do enunciado e
da enunciação. Verdade ou ficção, máscara ou autobiografia? Quais os limites da
representação? São temas dos quais partiremos para nos aproximarmos de uma obra
que, embora breve, se tornou uma das fortes referências de nossa poesia contemporânea.
I.
II.
ANA CRISTINA CESAR
In: Antologia 26 poetas hoje (1975) e Cenas de abril (1979) – trecho:
jornal íntimo
30
de junho
Acho
uma citação que me preocupa: “Não basta produzir contradições, é preciso
explicá-las”.
De
leve recito o poema até sabê-lo de cor. Célia aparece e me encara com um muxoxo
inexplicável.
29
de junho
Voltei
a fazer anos. Leio para os convidados trechos do antigo diário. Trocam olhares.
Que bela alegriazinha adolescente, exclama o diplomata. Me deitei no chão sem
calças. Ouvi a palavra dissipação nos gordos dentes de Célia.
27
de junho
Célia
sonhou que eu a espancava até quebrar seus dentes. Passei a tarde toda
obnublada. Datilografei até sentir câimbras. Seriam culpas suaves. Binder diz
que o diário é um artifício, que não sou sincera porque desejo secretamente que
o leiam. Tomo banho de lua. [...]
In: Cenas de abril (1979)
18 de fevereiro
Me
exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de recomendação, anteprojetos,
consultas. O irremovível trabalho da redação técnica. Somente a dicção nobre
poderia a tais alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários que me
exigem!
16 de junho
Decido
escrever um romance. Personagens: a Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos,
mulher farpada e apaixonada. O fotógrafo feio e fino que me vê pronta e prosa
de lápis comprido inventando a ilha perdida do prazer. O livrinho que sumiu
atrás da estante que morava na parede do quarto que cabia no labirinto cego que
o coelho pensante conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto só para mim com
janela de correr narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que papai me
deu.
In: Correspondência completa (1979) –
trechos:
Chove a cântaros. Daqui de dentro penso
sem parar nos gatos pingados. Me dá uma culpa. Mãos e pés frios sob controle.
Notícias imprecisas, fique sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça
muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as
letras que você pediu.
O dia foi laminha. Célia disse: o que
importa é a carreira, não a vida. Contradição difícil. A vida parece laminha e
a carreira é um narciso em flor. O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem
junto drama de desocupado. Agora fiquei ocupadíssima, ao sabor dos humores,
natureza chique, disposição ambígua (signo de gêmeos).
[...]
Sonho da noite passada: consultório
escuro em obras; homens trabalhando; camas e tijolos; decidi esperar no
banheiro, onde havia um patinete, anúncios de pudim, um sutiã preto e outros
trastes. De quem seria o sutiã? Ele dormiu aqui? Já nos vimos antes, eu saindo
e você entrando? Deitados lado a lado, o braço dele me tocando. Chega para lá
(sussurro). Ela deu minha blusa de seda para a empregada. Sem ele não fico em
casa. Há três dias que pareço morar onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de
desatenção neurológica me deixa louca. Saímos para o corredor. Você vai ter um
filhinho, ouviu?
In: Luvas
de Pelica (1980) – trechos:
Eu só enjôo quando olho o mar, me disse a
comissária do sea-jet.
Estou partindo com suspiro de alivio. A
paixão, Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente.
Esquece a paixão, meu bem; nesses campos
ingleses, nesse lago com patos, atrás das altas vidraças de onde leio os
metafísicos, meu bem.
Não queira nada que perturbe este lago
agora, bem.
Não pega mais o meu corpo; não pega mais o
seu Corpo.
Não pega.
Domingo à beira-mar com Mick. O desejo é
uma pontada de tarde. Brincar cinco minutos a mãe que cuida para não acordar
meu filho adormecido. And then it was over. Viajo num minibus pelo campo
inglês. Muitas horas viajando, olhando, quieta.
Fico quieta.
Não escrevo mais. Estou desenhando numa
vila que não me pertence.
Não penso na partida. Meus garranchos são
hoje e se acabaram.
"Como todo mundo, comecei a
fotografar as pessoas à minha volta, nas cadeiras de varanda."
Perdi um trem. Não consigo contar a
história completa. Você mandou perguntar detalhes (eu ainda acho que a pergunta
era daquelas cansadas de fim de noite, era eu que estava longe) mas não falo,
não porque a minha boca esteja dura. Nem a ironia nem o fogo cruzado.
Tenho medo de perder este silêncio.
[...]
Estou jogando na caixa do correio mais uma
carta para você que só me escreve alusões, elidindo fatos e fatos. É irritante
ao extremo, eu quero saber qual foi o filme, onde foi, com quem foi. É quase
indecente essa tarefa de elisão, ainda mais para mim, para mim! É um abandono
quase grave, e barato.
Você precisava de uma injeção de
neo-realismo, na veia.
In: A teus pés (1982)
conversa de senhoras
Não preciso nem
casar
Tiro dele tudo
que preciso
Não saio mais
daqui
Duvido muito
Esse assunto de
mulher já terminou
O gato comeu e
regalou-se
Ele dança que
nem um realejo
Escritor não
existe mais
Mas também não
precisa virar Deus
Tem alguém na
casa
Você acha que
ele agüenta?
Sr. Ternura está
batendo
Eu não estava
nem aí
Conchavando: eu
faço a tréplica
Armadilha: louca
pra saber
Ela é esquisita
Também você
mente demais
Ele está me
patrulhando
Para quem você
vendeu seu tempo?
Não sei dizer:
fiquei com o gauche
Não tem a menor
lógica
Mas e o trampo?
Ele está
bonzinho
Acho que é
mentira
Não
começa
duas antigas
I.
Vamos
fazer alguma coisa:
escreva
cartas doces e azedas
Abre
a boca, deusa
Aquela
solenidade destransando leve
Linhas
cruzando: as mulheres gostam
de
provocação
Saboreando
o privilégio
Seu
livro solta as folhas
Aí então ela percebeu que seu olho
corria veloz pelo
museu
e só parava em três, desprezando como uma ignorante
os
outros grandes. E ficou feliz e muito certa com a volúpia da
sua
ignorância. Só e sempre procura essas frases soltas no seu
livro
que conta história que não pode ser contada.
Só
tem caprichos.
É
mais e mais diária
–
e não se perde no meio de tanta e tamanha
companhia.
II.
Eu
também, não resisto. Dans mon île, vendo a barca e as gaivotinhas passarem. Sua
resposta vem de barca e passa por aqui, muito rara.
Quando
tenho insônia me lembro sempre de uma gaffe e de um anúncio do museu: “to see
all these works together is an experience not to be missed”. E eu nem nada. Fiz
misérias nos caminhos do conhecer. Mas hoje estou doente de tanta estupidez
porque espero ardentemente que alguma coisa... divina aconteça. F for fake. Os
horóscopos também erram.
Me
escreve mais, manda um postal do azul (eu não me espanto).
O
lugar do passado? Na próxima te digo quem são os 3, mas os outros grandes... eu
resisto.
Não
fica aborrecida: beijo político nos lábios de cada amor que tenho.
sete chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história
passional, que guardei a sete chaves, e meu
coração bate
incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa
história, me
aconselhas como um marechal-do-ar fazendo
alegoria. Estou
tocada pelo fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio
silencioso e origem que não confesso – como
quem apaga
seus pecados de seda, seus três monumentos
pátrios, e passa o
ponto e as luvas.
noite carioca
Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.
Atravanco na contramão. Suspiros no
contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem
nenhum segredo.
Preciso
voltar e olhar de novo aqueles dois quartos
vazios.
A história está completa: wide sargasso sea,
azul
azul que não me espanta, e canta como uma
sereia de papel.
atrás dos olhos
das meninas sérias
Mas
poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por
injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que
jamais repousam?
(p.23)
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